Mártir
Seus passos eram trôpegos e doloridos, na verdade todo corpo doía e ela não podia fazer nada a respeito disso. Podia ver o rosto de sua mãe na multidão com olhos molhados de tristeza e sabia que neste mundo seria a última vez que o veria, mas seu coração não estava abalado e sim jubiloso. Só conseguia pensar no livro, no homem que conheceu através dele; sua vida não parecia importante naquele momento e há tempos estava nesta situação.
Ouvia
os passos firmes dos guardas conduzindo-lhe à prisão quando soube que seu livro
havia sido queimado e seu coração sofreu. Ahh! Não a entenda mal, ela nunca pôde
estar tão perto de um livro como este e não era a devoção que sentia por cada
página que esbofeteava o intelecto e a razão que lhe causava dor e sim a
certeza que não poderia compartilhar aquela preciosidade para que outros
pudessem ler. Ler. Considerava uma dádiva. Sentiu-se grata. Homem algum poderia
ler seus pensamentos. Deliciou-se ao lembrar dessa maravilhosa constatação.
Esboçou um sorriso rápido, pequeno e invisível aos olhos dos opressores.
Tentava
repassar, mentalmente, cada palavra lida. A fome a incomodava, afinal perdeu a
noção de quanto tempo estivera sem comer. Durante a noite sentia ainda mais a
dor em seu corpo, virou-se para a parede fria e escura, realizou suas preces de
forma silenciosa, as lágrimas eram quentes assim como a fé, teve medo, porém
creu ser normal e para não se sentir abalada começou a pensar na forma como o
mundo foi criado: perfeito, bonito e bom. Imaginou que caminhava em um lindo
jardim e nele sentia o cheiro de tantas flores, provava frutos e frutas e
encontrava o homem por quem se apaixonou e era o motivo pelo qual estava
aprisionada. Adormeceu.
Não
sabia que horas eram quando a chuva de chutes a atingiu. Ouviu alguém perguntar
como o havia conseguido (era sobre o livro). Resoluta, tinha uma certeza: jamais
poderia revelar. Carregaram-na para uma sala que dava calafrios, viu coisas que
fizeram seu corpo sofrido arrepiar. Tremeu. Pensou em Paulo e em como ele foi
forte. Enquanto possuiu o livro leu as cartas deste homem muitas vezes e por
elas era encorajada! Em meio ao som de correntes ouviu a voz de seu amado:
“amor pela Coréia do Norte”. Chorou.
Acorrentaram-na,
imputar-lhe muita dor de forma que era difícil respirar. Começara a passar
lentamente um filme em sua mente, seria mesmo verdade isto? Rever momentos que
viveu antes de... antes de partir? Era isto. Relembrou a emoção de receber o
livro gasto em suas mãos juvenis, seus olhos estavam fixos nele e por um
momento não podia ver devido as lágrimas que se formavam em seus olhos pequenos
e escuros, alisou a capa, cheirou suas folhas, sorriu feito boba e devorou tudo
o que pode, decorou e praticou. Como seria morar num país livre? Como seria
poder ter o livro sem a necessidade esconder? Como seria poder contar a todos a
novidade que a movia?
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